terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Coros e Cortejos












Um velho disco de jazz toca do outro lado da sala, entretanto, descanso o olhar no quadro que preenche uma das paredes do meu escritório: "A Apoteose de Homero", do Dalí, um dos meus pintores de sempre, como quase todos os surrealistas. A reprodução da tela que tenho, foi adquirida numa loja de gravuras em Paris, há mais de quinze anos, num tempo em que acreditava na felicidade como fim possível e tocável, sem qualquer espécie de surrealismo, a tendência que mais me toca nas diversas faces da arte.

Na vida nada é embutido e todos os embustes caem, quando na imediação do olhar o verdadeiro sopro da vida acontece. No final do ano de 1999 tive um problema de saúde grave. Há coisas que me transcendem, e esta foi uma delas, pois encontrei o médico certo no momento certo, que prestava serviço no público e no privado. Mas as estruturas do sector público não me deram resposta a nada… felizmente tive a possibilidade de pagar a intervenção cirúrgica, tendo passado dez dias numa espera que hoje recordo como tendo sido os piores dias da minha vida. Na noite que fiz 33 anos fui submetida à referida intervenção cirúrgica, de alto risco (só mais tarde tive conhecimento da gravidade da situação!), e passados dez anos sempre que revejo o médico que me acompanhou, sei qual o sentido certo da palavra gratidão... talvez, por isto e algo mais, acredite que o céu nunca se engana...

Foi nesse dia que tive de optar, entre um hospital público que não me deu qualquer data previsível para a cirurgia e o hospital privado (para os lados de Benfica...), que tomei a verdadeira consciência do país onde nasci. Nesse momento deixei de acreditar no Estado de Direito Democrático, por todos os motivos e muitos mais…

Quem tem a possibilidade de optar, será mais livre do que quem não tem? Claro que sim... Só pode escolher quem tem essa hipótese, nomeadamente na área da saúde e da educação. Rendimentos de magros Euros no final do mês , cerceiam ao cidadão essa escolha, que poderá ser entre a vida e a morte. A Constituição da República Portuguesa, diz que todos temos direito à saúde, à educação, à justiça, à habitação... As utopias das  leis programáticas e hipócritas são isso mesmo, o sonho que nunca acontecerá neste cortejo dum Estado remetido à fraude dele próprio.

O ano passado tivemos um exemplo escandaloso dos doentes que ficaram com lesões oculares graves, num hospital público da área de Lisboa. Existem excelentes profissionais na área da saúde em Portugal, mas são as estruturas que falham, as atribuições, as competências, as hierarquias e as burocracias. Numa palavra: falha a forma.

Por isso, quando vejo estes senhores em jeito de pinguins, todos os dias com a mesma lenga-lenga, com as escutas e as escutinhas para trás e para a frente, com discussões ocas de sentido quanto ao segredo de justiça, quanto à separação de poderes (que não existe!), com a quantidade de leis feitas para casos concretos (não nos esqueçamos do processo Casa Pia...), pergunto: que legitimidade têm estes senhores, desde os legisladores incompetentes que elaboram umas leis consoante faça sol ou chuva ou a cor do arco-íris pela qual pensam estarem a ser irradiados, até aos magistrados que as aplicam, uns duma forma competente e séria, outros abusam do dito poder (?) discricionário, sob a alçada de sociedades secretas, interesses de grandes grupos económicos e muito mais que não se fala, perseguem cidadãos inocentes, fantoches dum qualquer "menino do coro" e assim cantam a canção da mentira, fazem desaparecer documentos de processos… e o resto, que é tudo que está por contar...

Vamos lá meus senhores à substância, pois de formas recheadas de incompetência balofa, anda este país entalado… entre coros e cortejos!


Comecei com  Dalí e acabo com as palavras de Sepúlveda:
 
  “Quando nós, homens, falamos da humanidade, designamos uma grande família cujo maior tesouro é a diversidade de raças, línguas, cor da pele, costumes, o modo distinto de se relacionar com a vida e com a morte. E essa família tão diferente tem, no entanto, o componente comum que faz de nós humanos: a consciência dos direitos humanos e a urgente necessidade de serem estes a constituir a única norma para organizar as nossas vidas.”
                    
Luis Sepúlveda, in “O Poder dos Sonhos” [2004]


Foto 1: tela a óleo de Salvador Dalí, pintor surrealista [Figueras, Catalunha: 1904 - 1989], in "A Apoteose de Homero" [1944-45], com subtítulo "Sonho Diurno da Gala", que aparece deitada à direita, tendo-a conhecido em Paris em 1929, sendo esta casada à data com Paul Éluard. 
Acabaria por se casar com ela em 1934. 
A obra encontra-se exposta na "Staatsgalerie Moderner Kunst", em Munique.

Foto 2: eu em 1999, três meses antes do que poderia ter sido o meu fim, nesta breve passagem, por aqui...



32 comentários:

  1. Olá Chris!

    Tomando o quadro de Salvador Dali como ponto de partida, diria que ele poderia muito bem representar o país que somos hoje, que cada vez menos tem a ver com a realidade que nos vai cercando, e connosco aparentemente impotentes para algo fazer para mudar o rumo ao barco - que ameaça encalhar em breve.
    Tudo isto se tornou uma grande farsa com actores de segunda que, manifestamente, não sabem o papel, deixando-nos com vontade de pedir o reembolso do dinheiro que gastámos nos bilhetes, tão pobre e deprimente é o espectáculo! Mas não parece nada fácil tirá-los dali já que todas foram ganhando o estatuto de actores residentes - com lugar garantido...independentemente do desempenho.
    E como por formação e convicção não acredito em milagres,confesso que estou muito pouco optimista quanto ao que o futuro nos possa reservar, com muita tristeza e pena minha - naturalmente!

    Um abraço.
    Vitor

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  2. Infelizmente tudo o que eu li agora, está certo!
    Felizmente, o Homem vive de esperança, o Homem anseia por justiça, o Homem espera-a...
    Havemos de lá chegar!
    Um beijão

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  3. Chris,
    Infelizmente, o que eu chamo de "privatização branca" da saúde é fenômeno que aparentemente ocorre no mundo todo. Cada vez mais o serviço público é precário, e empurra o doente a optar entre morrer à espera de um tratamento ou gastar o que tem e o que não tem.
    Uma vez ouvi um comentário tristemente realista, falando sobre o diabetes, a pessoa dizia que, se algum dia for encontrada a cura para este mal, a mesma será escondida a sete chaves, pois o que um diabético gasta mensalmente para tentar manter sua saúde é tanto que não compensa para a indústria farmacêutica que a doença seja curável.
    Infelizmente, a sede de lucros é, e será, sempre maior que o respeito pela vida humana.

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  4. Chris... Ler-te é um puro fascinio!

    Subscrevo quase tudo o que escreveste!!!


    Beijos...
    AL

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  5. Seu texto pode se reportar ao meu país, inteiramente, concordo com cada palavrea sobre esses senhores do lero, lero, beijocas

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  6. Este comentário foi removido pelo autor.

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  7. Vim aqui agradecer a estrela deixada no meu cantinho e dizer que gostei de te ler;-)
    Fiquei triste ao aprender que a certo momento da tua vida conheceste momentos de sofrimento e afliçao e desejo-te uma saúde rijíssima*

    A propósito do estado em que se encontram os serviços publicos aí em Portugal e a propósito de: "Rendimentos de magros Euros no final do mês, (que) cerceiam ao cidadão essa escolha, que poderá ser entre a vida e a morte" posso te garantir que aqui en França também é a mesma coisa.
    E o que admira mais, é que cada vez que o poder dá uma facada a um dos serviços publicos, o povo parece estar anestesiado, sem poder reagir!

    ***Que a tua boa estrela te acompanhe e te proteja*******

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  8. CADA VEZ MAIS SINTO-ME ENVOLVIDA NUM CAOS,UM POLVO CUJOS TENTÁCULOS NÃO SEI A MEDIDA CERTA...PRESSINTO QUE NOS ASFIXIAM SEM PIEDADE,NEM REMORSO...

    SEPÚLVEDA..."O PODER DOS SONHOS"..."A HUMANIDADE UMA GRANDE FAMÍLIA,CUJO MAIOR TESOURO E A DIVERSIDADE DE RAÇAS, LÍNGUAS,COR DA PELE,COSTUMES,MODOS DISTINTOS DE SE RELACIONAR COM A VIDA E NATURALMENTE COM A MORTE"...SINTETIZANDO...O RESPEITO PELA DIFERENÇA E TUDO AQUILO QUE ELA REPRESENTA..."A CONSCIÊNCIA DOS DIREITOS HUMANOS"...

    SERÁ UTOPIA?

    ESTÁ TUDO DITO NO TEU TEXTO.

    PEDRAS NUAS

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  9. Amiga Chris

    Primeiro quero agradecer sua visita e comentário em meu blog.

    Depois de ler seu post, que deixar apenas algumas palavras sobre o mesmo.
    Começo por felicitá-la pelo facto de ter encontrado o médico certo, no momento certo, para a solução do seu problema de saúde.
    Quanto a ter despertado para a realidade do país em que nasceu, eu me permito dizer-lhe
    que deverá sentir-se orgulhosa pela sua pátria.
    Não poderei dizer o mesmo, em relação ao seu povo, que por capricho nãon sei de quê, continua acreditando em cretinos mentirosos,
    dando-lhes a possibilidade de (des)governar o
    país. Até quando?!
    Quanto à Constituição da Republica!!!
    Que pura demagogia preparada por habeis demagogos! Acaso a minha amoga acredita no conteúdo da Lei da Constituição?
    Desengame-se minha amiga. Ela foi elaborada
    apenas para alguns! E esses alguns são os portugueses que os elegem!
    Qual Estado de Direito pode haver numa republica, se pela verdade da definição de
    republica, subentendo regime anarquista.
    Não vou alongar-me mais.

    Beijinhos

    Alvaro

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  10. Olá Cris .
    " o céu nunca se engana " , é verdade , mesmo que o aprendamos com uma certa dor .
    São as lições que viemos completar ou aprender .

    Quanto a todo este magnífico texto , como concordo contigo .
    Um beijo,
    Maria

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  11. É mais do que certo já terás visitado Figueres.
    Um deslubramento.
    Nunca mais esquecerei a manhã que lá passei.

    Quanto à saúde.

    Há quem diga que nos tornaremos verdadeiramente adultos quando o flagelo da morte se nos apresenta.

    Felizmente, superaste essa aflição e hoje deixas-nos este relato fantástico.

    A saúde, no modelo de apoio social em que está inserida, esmagado pela universalização de serviços, não respode á massificação da procura.
    Numa situação de aflição, quem não tiver recursos, pode morrer.

    As crise políticas do agora escuto eu, agora escutas tu, é a manifestação indesmentível da crise da República, do seu sistema de reperesentação e dos protagonistas, sem sentido de Estado.
    Lamentável.

    Saudações

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  12. Em absoluto, estou de acordo contigo em tudo o que dizes.
    Estou na área da saúde, no publico. Sei que tens razão quanto ao estado da forma!

    Um abraço

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  13. Olá amiga,
    Estou aqui para agradecer pela visita e lindas palavras.
    E encontro mais indas palavras.
    A dor é necessária paa amadurecer, o sofrimento é descartável.
    Aprendendo sempre.
    Beijinhos

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  14. Querida amiga, no essencial estou de acordo contigo.
    Para que se cumpra a Constituição, são necessárias (ainda que possam não ser suficientes) 2 condições: querer e saber.
    Acredito que alguns políticos o queiram, de facto. O problema é o saber. Sendo que o saber, terá que se estender desde os ministérios até ao porteiro do hospital (só para falar em saúde).
    O grande problema, na minha opinião, é que somos muito fraquinhos a gerir (os médicos não sabem e os boys são quase todos uma desgraça). Tecnicamente não estamos mal, mas tudo se esvai na falta de organização. Com o dinheiro que gastamos na saúde devíamos ter muito melhores resultados.
    Para não falar dos interesses corporativos instalados, etc., etc.
    Ainda assim, há alguns serviços públicos de saúde muito melhores que os privados. Mas a média é muito baixa, de facto.
    Querida amiga, ainda bem que sobreviveste. Se tivesses morrido em 99 (já eras muito bonita...) não daria pela tua falta, mas teria perdido a tua visão da sociedade. Obrigado por estares viva...
    Um beijo.

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  15. Querida Chris, fiquei sensibilizada com seu texto, conheço esta história; aliás, acho que muitos de nós, alguma vez, viveu algo semelhante.
    Deixo um link que fala, bem de perto, o que um médico pode representar em nossas vidas.

    Hospital público ou privado, o médico rateando, a coisa fica feia... Somos carteirinhas plastificadas quando procuramos qualquer sistema de saúde; o que conta, realmente, é o atendimento particular, dinheiro na hora. O mundo é assim, a não ser os países que têm interesse pelo seu povo.

    http://taisluso.blogspot.com/2007/10/procura-se-um-mdico-de-famlia.html

    Meu carinho
    Tais luso

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  16. Obrigada por sua vizitinha no meu blog! sua palavras são lindas, bj**querida!

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  17. Será embuste não desistirmos da felicidade?

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  18. ainda bem que não foi um fim, mas sim um recomeço...e que o poder dos sonhos seja uma realidade neste mundo surreal em que vivemos. E quanto ao Estado de direito todos os dias me pergunto em que consiste afinal? ao direito de uns terem tudo e de outros aguardarem ansiosamente por uma migalha?
    um beijo

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  19. *
    *
    " Um povo imbecilizado e resignado,
    humilde e macambúzio, fatalista e
    sonâmbulo, burro de carga, besta de
    nora, aguentando pauladas, sacos de
    vergonhas, feixes de misérias, sem
    uma rebelião, um mostrar de dentes,
    a energia dum coice, pois que nem
    já com as orelhas é capaz de
    sacudir as moscas..."
    *
    in - Guerra Junqueiro
    escrito em 1886.
    ,
    Conchinhas, ficam,
    ,
    *

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  20. Beautiful and fantastic post !! Thanks for sharing..

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  21. Nem todos podem contar essa história. Felizmente tudo correu bem para si.
    Quanto aos serviços de saúde prestados em Portugal, por experiência própria diria que deixa muito a desejar. Algo que tem de ser revisto e necessita de profundas alterações são, por exemplo, os cuidados paliativos.
    Um beijo e muito obrigada pela sua visita aos universosquestionáveis

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  22. o fim quase sempre, é o melhor começo.
    beijos

    http://laislabonitta.blogspot.com/

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  23. Chris,

    sentidamente não é demasiado tarde para ler e tecer um comentário acerca da sua experiência que reflete a enormidade de tantas outras. Se lesse esse texto algumas décadas adiante, creio que ainda assim alguns aspectos, infelizmente, ainda estariam inalteráveis, posto que não mudam ,lamentavelmente. O que se diz aí é pior aqui. E o fator que o faz ainda muito mais grave é o fato de ser um país que ainda engatinha no exercício da sua cidadania. Contenta-se com "esmolas" (para quem nada tem...). E ainda sorri feliz este povo subjugado, explorado e aviltado nos seus direitos fundamentais e sem condições de ter consciência disto. É difícil quem já não passou aqui semelhante indignação e desespero.
    Diante de todas as vicissitudes passadas, felizmente hoje você tem também a oportunidade de ter guardado este sentimento tão bonito que é a gratidão e ter o olhar ainda mais agudo, sensível, fraternal e solidário para a humanidade.



    Carinhoso beijo, querida.

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  24. Gosto de ler o que escreves, mas desta vez o intervalo está a ser grande...
    Querida amiga, boa semana.
    Um beijo.

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  25. Oh, Simpática Amiguinha:
    A realidade de assistência na nossa saúde peca por ser inexistente, confusa e própria de um país à deriva.
    Podiam ser mais modestos, prestáveis e menos senhores de si os intervenientes no campo da saúde. Tratam-se de Seres Humanos indefesos e que desejam o seu bem-estar, tranquilidade e sossego físico ou psíquico a que deveriam atender e velar pelo seu bem-estar, despindo a sua capa de importância e de donos do mundo.
    Sinceramente, acredito que a autêntica saúde deveria ser revista, alterada e mais atenciosa com quem sofre.
    Há países, em que são os médicos a abrir as portas dos hospitais, das Clínicas e dos Centros hospitalares.
    Isto em impensável em Portugal, o que faz de nós pobres em tudo.
    As mentalidades, as posturas, as condutas na saúde deviam ser revistas urgentemente para bem dos Cidadãos.
    Um texto comovente, surrealista, como os seus extraordinários quadros num Post pertinente e actual.
    Beijinhos ao seu talento e maravilhoso sentir, com respeito, estima e consideração.
    Sempre a admirar o que escreve.

    pena

    MUITO OBRIGADO pela visita.
    É um Anjo.
    Bem-Haja, extraordinária amiga.
    Escreve maravilhosamente.
    Ainda bem que já está bem.

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  26. Chris,

    Essa situação tão desagradável certamente não ocorreria na Suécia, país que vive sob um regime socialista, digamos, puro; essa política social visa sempre a saúde e a educação de seus cidadãos. Mas, entendo que poucos são os países como a Suécia.

    Abraços,
    Pedro.

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  27. Chris, vim reler-te e rever-te! É sempe uma delicia!


    Abraço
    AL

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  28. Há conceitos que só se adquirem depois de ultrapassarmos certas barreiras, sejam elas tecidas em véus diáfanos ou na mais crua das realidades, que às vezes parece surreal.
    Gostei muito do texto, amálgama de desencanto e esperança.

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  29. Olá!
    Convido a participar no meu blog com textos, depoimentos ou mesmo questões. O consultório de tarot está agora aberto até dia 20.
    Um grande beijo,
    Maria

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